Cemitério – lugar onde estão os
mortos. Pois eles não moram nas tumbas, nessa pátria de areia.
No Dia dos Mortos, quando vamos a um
cemitério, não os encontramos lá; nós os levamos e trazemos, como se os
passeássemos num domingo.
No regulamento dos edifícios, que
alguns síndicos pregam habitualmente nos elevadores, para notificação
compulsória dos condôminos, há quase sempre um item sobre os defuntos: os
enterros não devem sair dos apartamentos. Assim, em caso de morte, as famílias
se comprometem a transportar discretamente os corpos para as capelas
mortuárias.
Essa regra de condomínio faz que o
último encontro de um vivo com um morto seja longe da casa em que este morou,
numa sala cujos inquilinos horizontais sejam industriosamente revezados, ao
sabor do capricho das Parcas urbanas.
O amigo (ou conhecido, ou parente),
informado de uma morte, encaminha-se para o edifício cujas salas foram
divididas em capelas. Entra numa, olha os circunstantes, vê um cisco de lágrima
num olho inchado, não reconhece ninguém; entra noutra, pergunta, sussurra, até
encontrar o que procura. E diante do defunto, na sala cheirando a flor guardada
e a cera, ele sente vagamente não ter encontrado aquele a que procurava. A
criatura que, morrendo no meio da rua, saiu do asfalto diretamente para o
necrotério, e dali para a capela, perdeu-se nalgum lugar, e aos que ficaram
deixou apenas uma imagem de cera, um simulacro de si mesma.
Perdeu a vida, isto é, perdeu-se. E o
vivente pergunta às frescas lágrimas: onde estão os mortos¿ Em que lugar se
esconderam¿ saindo do cemitério, o amigo é envolvido pelo pensamento de que o
outro, deixado debaixo de uma laje de cimento, vai surgir à esquina, lendo um
vespertino, desejoso de um bate-papo sobre os foguetes lunares.
Não é sem razão que as crianças e as
mulheres têm medo de que os defuntos apareçam. Na realidade, eles se perderam
aqui mesmo, e esse estar-aqui não foi inteiramente derruído pela morte, que
apenas o danificou. Na sala do viúvo a morta poderá vir arranjar o jarro de
dálias com as suas finas mãos invisíveis. O corretor trepidante que, todas as
vezes que olhava um terreno baldio, era presa de uma alucinação imobiliária
mesmo depois de enterrado poderá telefonar para um conhecido e propor-lhe um
negócio da China, ou das Arábias; e, de um aposento onde só cabe seu corpo, ele
proporá salas de trinta metros quadrados. Principalmente os que morrem de
repente e não deixaram seus negócios regularizados (e tinham uma transação a
ultimar, um amor a amar, um ódio a odiar) parecem habitar a atmosfera tão vazia
deles à primeira vista. E os vivos sentem que algo os rodeia, como o frêmito de
um pássaro de invisível plumagem. E é como se a seus ouvidos estivesse
chegando, de um perto enigmático, uma palavra de estima ou de raiva.
O importante não é que os mortos
morram, despremiados, mesmo depois de sepultados, quando na maior de todas as
solidões, que é a do corpo sem alma dentro da terra, o guerreiro sozinho não
luta com o voraz adversário sempre vitorioso. Importa que eles não estejam nos
cemitérios e nos acompanhem na pequena viagem de ida e volta que fazemos no Dia
dos Mortos, e se ofereçam mesmo para segurar o buquê de flores que levamos para
suas lápides.
Importa que os mortos estejam
sepultados, dentro de nós, em nossa própria solidão, visitantes íntimos com
quem conversamos, criatura sentadas ao nosso lado, carentes de um Deus.
Que o homem de hoje saiba lembrar-se
de sua infância e da morte que nela habitava, na pequena cidade onde todos os
caminhos davam no oceano. E evoque o tempo em que, nas tardes de domingo,
passeava com a sua namorada à beira de um mar azul, sem cores aguacentas. E se
lembre, lúcido, límpido, leal, da sobremaravilha distanciada.
Nas mãos, eles deixavam o mar, iam
andando devagar e subiam duna. No alto estava o cemitério, com o muro caiado de
branco, correndo o risco de confundir-se com as nuvens cândidas.
Por um portão sempre aberto,
entrava-se. A namorada se sentava belamente sobre um túmulo, tirava os sapatos,
sacudia-os, libertando-os da areia. E ali, a cavaleiro do mar, eles ficavam até
o anoitecer. Famílias vinham, domingueiras, passear entre as tumbas, visitar os
que ali estavam, ou não estavam, pois que chegavam com os passeantes e com eles
voltavam.
O amador e a coisa amada andavam por
entre os túmulos – poucos mármores, talvez nenhuma escultura. O vento,
salgadiço, derreava cruzes, a salsugem comia as letras de alguns nomes, as
datas de vários sumiços terrestres. Das sepulturas rústicas, dos sete palmos de
terra nutrida de humano, brotavam flores. Ali, como no mais ilustre dos
cemitérios marinhos,
Le don de vivre a passé dans les
fleurs!
Era um cemitério de cidade pequena,
onde a morte é espaçosa, há lugar para todos, as vagas nos campos-santos não
são disputadas a peso de ouro, nem os prefeitos cogitam de enterrar os defuntos
em pé, como os egípcios, para economizar espaço. Era na província, onde os
mortos, deitados em negros esquifes, saem de suas casas de cortinas pretas nas
janelas.
E era rente ao mar. A areia era fofa,
macia, em suas profundezas deveria palpitar ainda alguma existência marinha. E
aos ouvidos dos defuntos, se ainda tivessem o dom da escuta, poderiam
perfeitamente chegar o barulho da onda estilhaçando-se na praia e o rumor surdo
dos coqueirais iluminados à noite pelo sol amarelo da lua.
Poderiam ouvir esse barulho de águas
já antigas, pois estavam perto. Rumor insistente e borbulhante, e ele acompanha
sempre os que o escutaram na infância; na sua úmida refluência, esse ritmo
oceânico imita a visita dos mortos. E nós o guardamos. Os mortos, o mar, a
poeira, o vento, nós o guardamos em nós, a todos, a esse suspiro imenso,
inextinguível.
Escritor, poeta,
ensaísta, gênio alagoano da literatura internacional.
Um comentário:
Presente magnifico, caro Ledo, amenizando lembranças triste...
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