terça-feira, 1 de novembro de 2016

NO DIA DOS MORTOS - Lêdo Ivo


NO DIA DOS MORTOS

Cemitério – lugar onde estão os mortos. Pois eles não moram nas tumbas, nessa pátria de areia.

No Dia dos Mortos, quando vamos a um cemitério, não os encontramos lá; nós os levamos e trazemos, como se os passeássemos num domingo.

No regulamento dos edifícios, que alguns síndicos pregam habitualmente nos elevadores, para notificação compulsória dos condôminos, há quase sempre um item sobre os defuntos: os enterros não devem sair dos apartamentos. Assim, em caso de morte, as famílias se comprometem a transportar discretamente os corpos para as capelas mortuárias.

Essa regra de condomínio faz que o último encontro de um vivo com um morto seja longe da casa em que este morou, numa sala cujos inquilinos horizontais sejam industriosamente revezados, ao sabor do capricho das Parcas urbanas.

O amigo (ou conhecido, ou parente), informado de uma morte, encaminha-se para o edifício cujas salas foram divididas em capelas. Entra numa, olha os circunstantes, vê um cisco de lágrima num olho inchado, não reconhece ninguém; entra noutra, pergunta, sussurra, até encontrar o que procura. E diante do defunto, na sala cheirando a flor guardada e a cera, ele sente vagamente não ter encontrado aquele a que procurava. A criatura que, morrendo no meio da rua, saiu do asfalto diretamente para o necrotério, e dali para a capela, perdeu-se nalgum lugar, e aos que ficaram deixou apenas uma imagem de cera, um simulacro de si mesma.

Perdeu a vida, isto é, perdeu-se. E o vivente pergunta às frescas lágrimas: onde estão os mortos¿ Em que lugar se esconderam¿ saindo do cemitério, o amigo é envolvido pelo pensamento de que o outro, deixado debaixo de uma laje de cimento, vai surgir à esquina, lendo um vespertino, desejoso de um bate-papo sobre os foguetes lunares.

Não é sem razão que as crianças e as mulheres têm medo de que os defuntos apareçam. Na realidade, eles se perderam aqui mesmo, e esse estar-aqui não foi inteiramente derruído pela morte, que apenas o danificou. Na sala do viúvo a morta poderá vir arranjar o jarro de dálias com as suas finas mãos invisíveis. O corretor trepidante que, todas as vezes que olhava um terreno baldio, era presa de uma alucinação imobiliária mesmo depois de enterrado poderá telefonar para um conhecido e propor-lhe um negócio da China, ou das Arábias; e, de um aposento onde só cabe seu corpo, ele proporá salas de trinta metros quadrados. Principalmente os que morrem de repente e não deixaram seus negócios regularizados (e tinham uma transação a ultimar, um amor a amar, um ódio a odiar) parecem habitar a atmosfera tão vazia deles à primeira vista. E os vivos sentem que algo os rodeia, como o frêmito de um pássaro de invisível plumagem. E é como se a seus ouvidos estivesse chegando, de um perto enigmático, uma palavra de estima ou de raiva.

O importante não é que os mortos morram, despremiados, mesmo depois de sepultados, quando na maior de todas as solidões, que é a do corpo sem alma dentro da terra, o guerreiro sozinho não luta com o voraz adversário sempre vitorioso. Importa que eles não estejam nos cemitérios e nos acompanhem na pequena viagem de ida e volta que fazemos no Dia dos Mortos, e se ofereçam mesmo para segurar o buquê de flores que levamos para suas lápides.

Importa que os mortos estejam sepultados, dentro de nós, em nossa própria solidão, visitantes íntimos com quem conversamos, criatura sentadas ao nosso lado, carentes de um Deus.

Que o homem de hoje saiba lembrar-se de sua infância e da morte que nela habitava, na pequena cidade onde todos os caminhos davam no oceano. E evoque o tempo em que, nas tardes de domingo, passeava com a sua namorada à beira de um mar azul, sem cores aguacentas. E se lembre, lúcido, límpido, leal, da sobremaravilha distanciada.

Nas mãos, eles deixavam o mar, iam andando devagar e subiam duna. No alto estava o cemitério, com o muro caiado de branco, correndo o risco de confundir-se com as nuvens cândidas.

Por um portão sempre aberto, entrava-se. A namorada se sentava belamente sobre um túmulo, tirava os sapatos, sacudia-os, libertando-os da areia. E ali, a cavaleiro do mar, eles ficavam até o anoitecer. Famílias vinham, domingueiras, passear entre as tumbas, visitar os que ali estavam, ou não estavam, pois que chegavam com os passeantes e com eles voltavam.

O amador e a coisa amada andavam por entre os túmulos – poucos mármores, talvez nenhuma escultura. O vento, salgadiço, derreava cruzes, a salsugem comia as letras de alguns nomes, as datas de vários sumiços terrestres. Das sepulturas rústicas, dos sete palmos de terra nutrida de humano, brotavam flores. Ali, como no mais ilustre dos cemitérios marinhos,

Le don de vivre a passé dans les fleurs!

Era um cemitério de cidade pequena, onde a morte é espaçosa, há lugar para todos, as vagas nos campos-santos não são disputadas a peso de ouro, nem os prefeitos cogitam de enterrar os defuntos em pé, como os egípcios, para economizar espaço. Era na província, onde os mortos, deitados em negros esquifes, saem de suas casas de cortinas pretas nas janelas.

E era rente ao mar. A areia era fofa, macia, em suas profundezas deveria palpitar ainda alguma existência marinha. E aos ouvidos dos defuntos, se ainda tivessem o dom da escuta, poderiam perfeitamente chegar o barulho da onda estilhaçando-se na praia e o rumor surdo dos coqueirais iluminados à noite pelo sol amarelo da lua.

Poderiam ouvir esse barulho de águas já antigas, pois estavam perto. Rumor insistente e borbulhante, e ele acompanha sempre os que o escutaram na infância; na sua úmida refluência, esse ritmo oceânico imita a visita dos mortos. E nós o guardamos. Os mortos, o mar, a poeira, o vento, nós o guardamos em nós, a todos, a esse suspiro imenso, inextinguível.


Lêdo Ivo; O Navio Adormecido no Bosque; 1977.
Escritor, poeta, ensaísta, gênio alagoano da literatura internacional.